Sara Wagner York: Por outras independências

 

/Sara Wagner York

Sara Wagner York (ou Sara Wagner Pimenta Gonçalves Jr) é mulher-travesti, conceito amplo que pode ter equivalência a mulher trans. Deficiente visual e graduada em Letras e Pedagogia, Msc em Educação – ProPEd/UERJ. Integrante do GENI (Grupo de estudos em gênero, sexualidade e Interseccionalidade em educação e saúde – ProPEd-UERJ), GE-SER (Grupo de estudos em gênero e raça – NEPP-DHPP-UFRJ), GEREFFON (Grupo de estudos em relações raciais, feminismos e outras fontes dissidentes- PPFH-UERJ), IBTE (Instituto Brasileiro Trans de Educação) e ANTRA (Associação Nacional de Transgêneros e Travestis). Bolsista CNPq. Email: sarayork@live.com.pt

 

 

Quem aprende com quem?

Trago neste texto proposições e percepções acerca da (des)diferença e de como, apesar de sermos abarcados pelas dinâmicas neoliberais, nossas vidas e práticas passam a emergir em cenários pouco comuns.

Enquanto pessoa trans/travesti, penso que trazer este texto, inicialmente publicado na Carta Capital, para o Ruido Manifesto traz ares de redes tecidas habilmente com outros grupos e interlocutores tão potentes e especiais, que tanto nos alocam nesses caminhos de alianças.

No dia 13 de dezembro de 2018, em um evento “babadeiro” (estou usando Pajubá, porque o ENEM “deixa” e o atual governo ainda não barrou!) de “homens brancos”, ocorreu a 31° Reunião de ABA – Associação Brasileira de Antropologia, um evento do mais alto nível intelectual que ocorre anualmente e propõe pensar os rumos epistemológicos e conceituais dos saberes humanos e humanísticos. Este ano, na mesa de abertura, estava o renomado Professor Dr. Eric Fassin, da reconhecida Universidade Paris 8. Eric Fassin, com grande habilidade, trouxe breves palavras e seu agradecimento, em português – língua local, já que o evento acontecia em Salvador. Uma coisa de pessoas de altíssimo grau intelectual e acadêmico, e um cuidado na entrega da informação, na garantia de que esta não seja extraviada ou se perca em discurso amplamente hermético. Os textos do sociólogo francês, são conhecidos pela leveza e altíssimo cuidado docente em transformar grandes conceitos em materialidades táteis. Trata-se de um professor dando aula para alunos e o faz com a certeza de estar sendo acompanhado, em temas que emergem de gênero, religião e classe às dinâmicas neoliberais. Falando em neoliberalismo, já sabemos, é o berço do império capitalista, a dobradura moldada do terno da meritocracia, em que todo e qualquer “ninguém” pode se tornar um senhor do mais alto grau em qualquer coisa, bastando para tal, querer e dedicar-se com fé e afinco, diriam os seguidores neoliberais.

Seguidores do Neoliberalismo, não do Fassin!

Na entrada, moças lindas e loiras; no serviços de guarda e limpeza, moças negras…

Aí, o negócio já deu problema…

Sabemos que lugares subalternizados são dispensados às classes inferiores, mas na Bahia o angu é engrossado no ato, não se guarda pra depois. Depois de toda apresentação, com toda graça e glamour que podem e merecem, os organizadores permitiram que um grupo de pessoas negras lessem uma moção que dizia (copiei palavra por palavra):

“Hoje em 2018, na mesa de abertura da 31° RBA, foi percebido por todas e todos os presentes, a inexistência da presença negra em lugares de reconhecimento científico e, lamentavelmente, a presença negra apenas em lugares de subalternidade, como servir bebidas ou atuando no papel de segurança, assim como uma temporalidade cíclica, observamos que há mudez das estruturas raciais e que tal mudez é reproduzida nas RBA (Reuniões Brasileiras de Antropologia) de modo sistemático e simbólico. Desta maneira, nós, antropólogos negros e negras, participantes da 31° RBA, manifestamos publicamente nosso repúdio à inexistência da representatividade negra na mesa de abertura ocupando espaços de reconhecimento científico. Sabemos que todos e todas nós estamos imersos numa sociedade racista e que a desnaturalização e a percepção dos privilégios é um exercício que deve ser constante. Dessa maneira, com intuito de combater esse fosso racial dentro da Associação Brasileira de Antropologia, nós antropólogos e antropólogas negras reivindicamos a criação de um comitê permanente de antropólogos negros e antropólogas negras dentro desta Associação, colaborando de forma pedagógica e construtiva nos espaços de decisão desta instituição e da nossa disciplina de forma plena. Nosso intuito com tal reivindicação é que as resistências deliberativas da antropologia brasileira estejam permeadas por uma sensibilidade plural, que incorpore sujeitas e sujeitos produtores de conhecimentos étnico-raciais diversos. Por fim, gostaríamos que essa moção fosse publicizada em todos os meios de comunicação da ABA, publicada nos anais deste evento e em caminhada a todas e todos filiados dessa Associação, assim como aos Programas de pós-graduação, cursos de antropologia e Ciências Sociais do país e instituições parceiras.”

Fez-se silêncio, após um longo aplauso.

Não sei dizer exatamente quando foi que os negros e negras puderam reivindicar seus espaços por séculos negados. Aliás, sei sim. Mas como ninguém nasce com a cara de pau necessária para constranger o mundo cis-branco (isto é, um mundo feito por pessoas que estão confortáveis com suas caixinhas de sexualidade e gênero atribuídas pelo sistema cultural eurocêntrico e bio-patologizante), quando uma mulher negra para no meio de uma reunião dessas e diz o que de fato está acontecendo, somos convidados a (re)pensar imediatamente privilégios que nos cabem, em menor ou maior grau. Por outro lado, nós, pessoas trans (pessoas que divergem do sexo biológico vinculado à compreensão de binária de gênero), devidamente higienizadas, fomos deixando como estava.

Quando a leitora da moção fala da inexistência da presença negra em lugares de reconhecimento científico, mas a presença negra em lugares de subalternidade, penso que enquanto travesti nem isso nos permitiram, nem o piso. Se há uma mudez reproduzida nas reuniões e textos de modo sistemático e simbólico sobre nossas vidas trans, quando não exotizadas ou erotizadas, estão objetificadas. No 31° aniversário e reunião anual não houve tempo hábil para gestação trans na antropologia (e em outras tantas áreas), fazendo-me pensar sobre a inexistência da representatividade trans naquele campo, nenhuma trans nunca quis estar nessa área de conhecimento?

A sociedade ocidental moderna é racista, que sonha em ser branca e cis-hetera,  convivendo com algo que a acompanha e condiciona, a opressão patriarcal. Por isso o pavor dessa sociedade sobre corpos que não correspondem às suas funções necropolíticas (o que a grosso modo seria a manutenção da história daquelas vidas descritas ao longo do tempo como vidas que servem de exemplos, quando na verdade omitem suas erratas cotidianas) enquanto corpos portadores de falo. Por outro lado, obrigando outros corpos fálicos, aqueles que aderem à cisheteronorma (nascidos e crescidos com satisfação plena no “papel de meninos e meninas”, segundo a ministra da família cristã e liderança do Estado Teocrático, Damares de tal), a sua não percepção de seus privilégios. E quando a moça negra pede a publicização do fato, a primeira coisa que me vem à mente é, se fossem pessoas trans, não seríamos acusadas de escândalo? Depois de quase um mês, aguardando pela publicização do caso, que não houve, venho dar minha “força” às irmãs negras de luta, que tanto têm nos ensinado sobre amor próprio e outras formas de aliança.

Damares nos faz perceber que a liturgia dos cargos perdeu o sentido, quando ministros traduzem a fala de seu superior, ou quando absurdos são reiterados como “mal entendidos”, para se ter um estado moderno como Marx Weber diz, “você tem que ter impessoalidade de uma burocracia racional e a manutenção da liturgia dos cargos de poder”, essa liturgia dos cargos de poder faz com que ocorra o funcionamento da maquinaria estatal, a população trans não quer reconhecimento apenas, mas a sua plena inserção de sujeitos nessa máquina (que mói algumas vidas).

As negras mudam histórias quando, a partir delas, as negras da academia, muitas de nós (trans) e eu, passamos a ter esperança de estar numa mesa, numa dessas reuniões em uma universidade plural, em que minha história de mulher, de travesti, de pai, de avó, professora de 6° ano em escola pública, pesquisadora e bolsista do CNPq possa ser tão interessante e notada quanto outras histórias que sempre foram autorizadas e não exotificadas em generalizações. Se é para falarmos de um “ser humano” de referências históricas, então peço que ele seja mulher-travesti-preta. Assim poderemos algum dia nos atermos a outras tantas histórias.

 

Fonte: http://ruidomanifesto.org/uma-cronica-de-sara-wagner-york/