Maria Lacerda de Moura (1887-1945): professora feminista e anarquista 

/Flaviane Barbosa da Silva

O presente texto está embasado em pesquisas críticas sobre sociedade e cultura brasileira e foi adaptado para finalidades didáticas, visando fortalecer os elos entre universidade e escolas conforme princípios que regem o Portal do Bicentenário.

Nos primeiros decênios do século XX, houveram vários debates públicos em torno da forma como estava estruturado ou deveria se estruturar o ensino no Brasil. Durante a Primeira República, paralelamente as práticas positivistas de educação instituídas pelo Estado, surgiram, por parte dos anarquistas, debates e propostas de novas formas pedagógicas que pudessem beneficiar toda a população ao estimular a autonomia, emancipação e senso crítico nos indivíduos.   Inspirados por teorias sociais que exaltavam o papel dos trabalhadores(as) e camponeses(as) ao longo da formação do mundo moderno, os anarquistas defenderam uma educação libertadora, humanista e construída não em bases eclesiásticas ou falso-moralistas, mas da necessidade de se libertar os indivíduos das várias formas de opressão social enfrentadas no mundo industrial.

Maria Lacerda de Moura, professora, militante anarquista e também considerada feminista devido seu apoio constante às lutas das mulheres, construiu um pensamento voltado contra o Estado burguês e todos os mandarins que tiram proveito do autoritarismo e opressão econômica sob os quais se alicerçam essa forma de governo. Entender as discussões educacionais provocadas por Moura a partir de suas obras, publicadas na transição da Primeira República para o Estado Novo, pode auxiliar na compreensão de ideias pedagógicas reformistas e revolucionárias que estavam fora dos enquadramentos e normas que regiam o sistema educacional dominante.

Para os anarquistas, o Estado moderno, em suas variantes burguesa ou absolutista, oprime o indivíduo pobre e favorece apenas as elites dessas sociedades ao fornecer inúmeras possibilidades para que aumentem seus privilégios, poderes e riqueza as custas da exploração da miséria das classes populares. Essa corrente iconoclasta de pensamento não recusa totalmente a política, apenas sustenta que uma forma de poder não centralizada pelo Estado seria a mais adequada para atender a maior parte da sociedade. Portanto, defendem menos autoritarismo e mais liberdade; menos exploração e mais coletivismo.

Maria Lacerda de Moura, portanto, propõe uma série de reflexões sobre a liberdade feminina e daqueles menos favorecidos. Em Civilização: Tronco de Escravos, publicada pela primeira vez em 1931, Moura refletiu sobre como a educação cristã, a concepção burguesa de ciência e as guerras podem atrasar a evolução das sociedades, na medida em que são usadas por governos enquanto estratégias de dominação política que inibem ou reprimem buscas por pedagogias libertárias, autonomia feminina, conquistas trabalhistas ou pela liberdade de expressão. Na citada obra, a autora pontuou o seguinte: “a evolução é individual, e o conservantismo das massas é assegurado pela influência ancestral fossilizada no subconsciente coletivo e pela educação, domesticadora até o servilismo” (p. 09).

Na Primeira República, ocorreram muitas descobertas cientificas no Ocidente. No entanto, para Maria Lacerda Moura, nenhum desses avanços constituiu propriamente algo de positivo para a evolução da população. Pelo contrário, essas descobertas levariam mais rápido a humanidade a um estilo de vida padronizado, degradável ou insustentável. Nesse sentido, nenhuma sociedade, por mais tecnológica que fosse, deveria ser considerada civilizada enquanto considerasse as mulheres seres irracionais. Conforme denunciou a autora: “Todas as descobertas, sem exceção alguma, todas as pesquisas das ciências são açambarcas pelos interesses industriais e para as conquistas da guerra, consequentemente” (p.12). 

Não adiantava a Igreja perder domínio, a ciência ganhar espaço ou o pensamento social ser modificado, se a população não evoluía nos costumes ou, pior, continuasse do mesmo jeito: sendo refém da Igreja, do Estado e agora, da Ciência. Atenta para os interesses dominantes de controle social obscurecidos por discursos tecnicistas, Maria Lacerda criticou a glorificação acrítica dada aos cientistas.  Segundo a autora, cientistas se vendem constantemente para o Estado ou para quem tem mais poder e “(…), em vez de servir para elevar a mentalidade humana ao nível do ideal cientifico puro e das aspirações de renovação social pela educação” (p. 14), acabam corrompidos por vaidade, oportunismo e exibicionismo. Na ótica da autora, a evolução de toda uma sociedade é corrompida se qualquer grupo social estiver corrompido.

Dessa forma, para a autora, a educação, que deveria ser o principal meio para a libertação das mulheres, estava contaminada por interesses patriarcais. Ritos e conteúdos escolares pretensamente positivistas, técnicos e neutros serviam para desviar os indivíduos de reflexões críticas sobre o mundo no qual estavam inseridos.  Durante toda a Primeira República, a questão da educação foi o carro-chefe de discursos políticos que prometeram a modernização do Estado, mas isso não significa que as equipes dos governos estavam debatendo esses projetos a partir de uma concepção pedagógica emancipadora.

Recomendamos, portanto, o uso deste artigo por professores e estudantes da rede básica de educação enquanto material complementar para preparo de aulas, fonte para seminários temáticos, oficinas de leitura, rodas de conversa e outras atividades de ensino.

 

Maria Lacerda de Moura. Créditos: Arquivo Histórico-Social/Projecto Mosca.

 

#paracegover  A imagem é cartão branco com uma fotografia em preto e branco da professora, escritora e feminista Maria Lacerda de Moura.  No alto da imagem está a fotografia em formato ovalado e abaixo traz a assinatura da escritora. A fotografia, em fundo escuro,  mostra Maria Lacerda de Moura   vista a partir do seu perfil esquerdo, uma mulher branca, de cabelos pretos, lisos, penteados e presos. Ela veste uma roupa branca, com decote em V.

 

Para saber mais

MOURA, Maria Lacerda de. Civilização: tronco de escravos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1931.

____. Religião do Amor e da Beleza. 2ª ed. São Paulo: O `Pensamento, 1929.

RAGO, Margareth. Entre o anarquismo e o feminismo: Maria Lacerda de moura e Luce Fabbri. In: Verve: revista semestral autogestionária do Nu-Sol. São Paulo, n. 21, p. 54-78, jun/2012.