Lima Barreto e a imprensa brasileira  

/Joachin Azevedo Neto

O presente texto está embasado em pesquisas críticas sobre sociedade e cultura brasileira e foi adaptado para finalidades didáticas, visando fortalecer os elos entre universidade e escolas conforme princípios que regem o Portal do Bicentenário.

A literatura quando considerada também testemunho histórico, permeado de valores, subjetividade e interpretações sobre as experiências de determinadas sociedades, pode ser uma ferramenta bastante eficaz para suscitar reflexões e debates críticos sobre o atual momento que o país atravessa. A obra do escritor Afonso Henriques de Lima Barreto, nesse sentido, possui uma importante dimensão pedagógica alicerçada em denúncias feitas pelo autor em face de temas que marcaram a formação do Brasil contemporâneo como o racismo estrutural, o autoritarismo e a ausência de cidadania.

Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro em maio de 1881 e faleceu, precocemente, aos 40 anos, em 1922. Filho do tipógrafo João Henriques, que trabalhou na Imprensa Nacional e da professora Amália Augusta, vítima de tuberculose quando o escritor tinha apenas 6 anos: ambos negros e de origem social modesta. O autor teve no lar uma base letrada que, durante sua infância e adolescência, foi direcionada para uma finalidade sonhada por seu pai: ver o filho tornar-se doutor. Estudou no Liceu Popular Niteroiense e na Escola Politécnica, ambas instituições frequentadas pelos filhos das elites cariocas, graças aos contatos políticos de João Henriques. É nesse período da juventude que teve contato com obras de Balzac, Sthendal, Tolstoi e Dostoievsky: literatos estrangeiros que inspiraram politicamente e esteticamente o autor.

 O jornalista Francisco de Assis Barbosa, em cuidadosa e bem documentada biografia intitulada A vida de Lima Barreto (1959), confirma que o escritor priorizou a ambição de ser escritor, quando, em 1905, deixou o projeto de diplomar-se doutor de lado e optou por concurso para o modesto cargo público de escriturário da Secretaria de Guerra. Sendo assim, quando era necessário definir sua profissão, Lima se auto afirmava como jornalista. Defendeu sempre a sinceridade e o compromisso social no ato de escrever e satirizava o artificialismo e a obsessão pelo purismo gramatical dos escritores da moda. 

Seu romance de estreia, intitulado Recordações do escrivão Isaías Caminha, publicado em 1909, narra a trajetória de um talentoso rapaz pobre e negro que sai do interior do Rio para estudar e trabalhar na capital carioca. Isaías tinha o sonho de fazer faculdade e obter o título de doutor, porém a realidade que teve de enfrentar lhe foi bastante áspera. Chegou a passar fome por causa da falta de dinheiro, não recebeu o apoio prometido por um deputado que estabeleceu contatos e foi acusado, em episódio repleto de racismo, de furtar na pensão onde estava morando. Porém, seu talento com as letras foi percebido e, assim, acaba contratado para integrar a equipe de redatores do fictício jornal O Globo

Esse trágico romance é encerrado com digressões de um Isaías Caminha mais velho, casado e com filho, em torno de sua vida. A impotência diante da corrupção e dos preconceitos vigentes, além do comodismo que o levou a coadunar com o fanfarrão chefe do jornal, Ricardo Loberant, atormentam a consciência do já maduro personagem. Embora recordar dos episódios que marcaram sua juventude com grande ironia, atacando as aparências de cordialidade e civilidade que fizeram parte da fachada da imprensa da época e expondo o mar de hipocrisia e prevaricação no qual afundava o jornalismo brasileiro, faça parte da estratégia memorial de Isaías para resgatar sua dignidade, esse romance finda com uma melancólica reflexão em torno do emprego da inteligência humana: quando colocado a serviço do poder e privilégios sociais, o intelecto definha e acovarda. 

O fato é que esse polêmico romance de estreia constitui uma sátira bastante potente do jornalismo carioca na Primeira República. O escritor tinha o intuito de provocar o debate, entre os letrados, sobre a urgência de um jornalismo militante e comprometido com os mais desfavorecidos. Porém, Edmundo Bittencourt, diretor de um dos mais importantes jornais da época, o Correio da Manhã, após leitura da obra, se reconheceu no personagem Loberant e, após ataque de fúria, proibiu que o nome de Lima fosse citado no periódico por 50 anos. Recomendação que foi aceita pela maior parte dos periódicos cariocas. Condenado ao silenciamento pela imprensa oficial, o autor passou a contribuir sistematicamente com artigos de opinião, crônicas e sátiras para o que hoje entendemos por imprensa independente. 

As crônicas barretianas foram reunidas e publicadas na íntegra, pela primeira vez, pela Editora Brasiliense, em 1956, sob os seguintes títulos: Histórias e sonhos, Marginália, Bagatelas, Feiras e Mafuás, Vida urbana e Coisas do Reino de Jambon. Em 2004, Beatriz Resende e Rachel Valença organizaram dois volumes, pela Editora Agir, intitulados Toda crônica. Em Sátiras e outras subversões, obra publicada pela editora Companhia das Letras, em 2016, Felipe Botelho Corrêa coligiu e publicou 164 textos inéditos, que foram assinados com pseudônimos nas revistas Fon-fon e Careta, do início até o fim da carreira literária do escritor carioca. Em meio a essa seara literária, o estilo engajado de Lima Barreto está presente com grande vigor. 

A leitura didática do romance Isaías Caminha pode suscitar relevantes reflexões orais, escritas ou mesmo performáticas (teatro escolar) sobre a continuidade dessa concepção dominante do jornalismo que encara a comunicação pública como mero subterfúgio para louvar os mandatários da vez e empresas que estão no poder ou silenciar vozes de dissidentes que optaram por abordagens críticas dos fatos.

Recomendamos, portanto, o uso deste artigo por professores e estudantes da rede básica de educação enquanto material complementar para preparo de aulas, fonte para seminários temáticos, oficinas de leitura, rodas de conversa e outras atividades de ensino.

Lima Barreto fotografado para ficha antropométrica no Hospital Nacional de Alienados, aos 33 anos, em 1914. Foto: Acervo da Biblioteca do Instituto de Psiquiatria da UFRJ, 1914.

 

#paracegover  Fotografia em preto e branco, com fundo claro,  em formato de busto (3×4) do escritor Lima Barreto. Nela, o escritor, um  jovem negro, com barba curta,  rala e bigode curto, cabelos pretos, crespo, curtos e penteados, e orelha esquerda  em destaque, olha diretamente para a câmera fotográfica.  Veste uma camisa  com listras verticais brancas e escuras, abotoada até o pescoço.

 

Para saber mais

AZEVEDO NETO, Joachin. Vida literária e desencantos modernos: uma história da formação intelectual de Lima Barreto (1881-1922). Tese (doutorado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em História, Florianópolis, 2015. 

BARRETO, Lima. Sátiras e outras subversões. Organização: Felipe Botelho Corrêa. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

____. Toda crônica. Vol. 1 & 2. Organização: Beatriz Resende e Rachel Valença. Rio de Janeiro: Agir, 2004.

____. Recordações do escrivão Isaías Caminha. São Paulo: Brasiliense, 1956.

BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto: 1881-1922. 2ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1959.

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