Um Guimarães desconhecido: olhares sobre o nazismo  

/Mylena Queiroz

25 de Outubro de 1940
Quando a bomba caiu, a minha casa terremoteou.
(Guimarães Rosa, Diário de Guerra.)

O presente texto está embasado em pesquisas críticas sobre sociedade e cultura brasileira e foi adaptado para finalidades didáticas, visando fortalecer os elos entre universidade e escolas conforme princípios que regem o Portal do Bicentenário.

João Guimarães Rosa (Cordisburgo, 27 de junho de 1908 — Rio de Janeiro, 19 de novembro de 1967), médico, diplomata e escritor brasileiro, foi o segundo marido de Aracy de Carvalho, a quem dedicou a obra Grande Sertão: Veredas (1956). Aracy é conhecida como “Anjo de Hamburgo”, que inclusive será tema da série de mesmo nome em produção pela Globo. (1)

A alcunha de Aracy de Carvalho se refere ao fato que enquanto trabalhou na sessão de passaportes, no Consulado de Hamburgo, junto a Guimarães Rosa, foi responsável pela facilitação dos vistos de centenas de judeus. Conforme pesquisa das documentaristas de Outro Sertão (2013), no primeiro semestre de 1939, o número de vistos de turistas concedidos a judeus pelo consulado do Brasil em Berlim foi nulo. Comparativamente, no mesmo período, o número de vistos de turistas concedidos a judeus pelo consulado do Brasil em Hamburgo foi de quase uma centena. Adriana Jacobsen e Soraia Vilela atribuíram essa diferença de números às atividades de Guimarães Rosa e Aracy Moebius de Carvalho, livrando centenas de judeus do nazismo.

Quando atuou como cônsul adjunto brasileiro em Hamburgo, de 1938 a 1942, João Guimarães Rosa registrou suas impressões em um Caderno, ou Diário de Guerra, como é chamado pelos professores da UFMG, os quais tanto da área de literatura, como de letras alemão, tiveram acesso à obra antes do impedimento da publicação integral por parte dos familiares de Rosa. O Diário tem trechos com certos códigos de registro, além de algumas palavras criadas, isto é, neologismos, que, posteriormente a essa experiência como vice-cônsul, marcariam a produção literária do autor.

Referências diretas ao Itamaraty são notadas nos textos Histórias de Fadas, Os abismos e os astros, O homem de Santa Helena e O lago do Itamaraty. Além disso, passam expressamente por Hamburgo os personagens de O mau humor de Wotan, Zoo (Hagenbecks Tierpark, Hamburgo – Stellingen), O burro e o boi no presépio, A senhora dos segredos e Homem, intentada viagem, todos estes textos reunidos, junto a outros, em Ave, Palavra (1970), miscelânea de gêneros literários, como bem informa a própria catalogação, publicada já após a morte de Guimarães. Assim, Ave, Palavra, “guerra abaixo, guerra acima” (GR, 2009, p. 31) forma um conjunto de escritos tão rico quanto diverso, visto que a “Hitlerocidade”, neologismo de Rosa que mescla Hitler e Atrocidade, é apresentada nas crônicas as quais, curiosamente, têm como narrador um diplomata sulamericano na Alemanha. 

O ano da chegada de Guimarães Rosa a Hamburgo (1938) foi o ano da Noite dos Cristais (Kristallnacht). Este período, ao qual a teórica e professora de filosofia política Hannah Arendt (1906-1975) chamou de “Primeira Solução”, dessa inferiorização dos judeus pelos nazistas, era ainda pouco apontado como negativo por pessoas fora da comunidade judaica de modo geral. Embora o governo brasileiro do período, o getulismo, estivesse longe de se opor à Alemanha nazista, Rosa já começava com suas impressões sobre o projeto de destruição que se fazia em curso.

Não apenas em seu Diário, mas em textos literários como em A Velha, com narrador diplomata sulamericano, lemos: “Só então entrou a falar sob força de fatos: dos campos-de-prisão, as hitlerocidades, as trágicas técnicas, o ódio abismático, os judeus trateados. Olhávamos, ali, na parede, de corpo inteiro, o marido. — ‘Ele era judeu, sabeis?’” (GR, p. 117). Essa opinião de Rosa contrária ao nazismo é marcada também, como dito, pela sua ação clandestina ao facilitar vistos a judeus enquanto atuava no Consulado. Na Alemanha, Guimarães viu muitos lugares bombardeados, viu a própria casa “terremotear”, o Consulado em que trabalhava ser atingido e há, inclusive, registros em que ele escrevia enquanto estava em um porão:

25 de Outubro de 1940.
Tivemos de descer à Keller, onde estou escrevendo, porque vão fazer rebentar os Blindgänger.

Toda essa façanha de João Guimarães Rosa ainda é pouco comentada, mesmo que tenha lhe rendido um dossiê da Gestapo, a polícia secreta oficial da Alemanha nazista, sobre suas atividades, bem como um confinamento pelo governo alemão de 100 dias em Baden Baden. Ainda sobre o Caderno, apesar de não existir uma publicação completa do Diário Alemão, há matérias em revistas como a Bravo!, O Tempo, Jornal UAI/Estado de Minas, publicadas antes do impasse gerado pelos herdeiros, com o impedimento da publicação integral..

Em entrevista com o escritor e tradutor Haroldo de Campos (São Paulo, 19 de agosto de 1929 — São Paulo, 16 de agosto de 2003) sobre o primeiro encontro dele com Guimarães Rosa, ele diz que, exaltado com o assunto, Rosa nem sequer se apresentou e logo discorreu sobre o fascismo como a personificação do “demo”, em alusão à sua experiência como cônsul em Hamburgo. Guimarães publicou vários livros, dentre os quais o seu único romance Grande Sertão: Veredas. Neste livro, questionamentos sobre a existência do Diabo (existe? Ou o que há é o homem humano?), temas como alteridade e encontro com as diferenças compõem a narrativa. O olhar de Rosa sobre o nazismo, escritor considerado um dos maiores que o país já teve, marcou a sua biografia e a sua produção literária.

 

 

Notas

(1) ‘O Anjo de Hamburgo’: conheça a trama e o elenco da série que conta a história de Aracy de Carvalho. Acesse aqui

 

Para saber mais

BRAVO! São Paulo, n. 126, fev. 2008, p. 28-39. 

CAMPOS, Haroldo de. Metalinguagem e outras metas. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 1992. In:

COSTA, Ana Luiza Martins. Veredas de Viator. Cadernos de Literatura Brasileira. João Guimarães Rosa. São Paulo, Instituto Moreira Salles, n. 20 e 21, 2006.

HAAG, Carlos. A guerra dos Rosas. Pesquisa Fapesp, 2011. Disponível em: http://revistapesquisa.fapesp.br/en/2011/11/11/a-guerra-dos-rosas-2/ 

OTTE, Georg. Entre Goethe e Hitler: o Diário de guerra de João Guimarães Rosa. Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 135-150, 2018. 

Outro sertão (doc.). Direção: Adriana Jacobsen e Soraia Vilela, Brasil, 2013, 73 min. 

ROSA, João Guimarães. Ave, palavra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009. 

ROSA, João Guimarães. A senhora dos segredos. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 6 dez. 1952. 

ROSA, João Guimarães. A velha. O Globo, Rio de Janeiro, 3 jun. 1961. 

ROSA, João Guimarães. Literatura e vida. Arte em revista, ano I, 2: 5-17, São Paulo, maio/agosto 1979.