Os contadores de petas da Sociedade de Petalogia 

/Cristiane Garcia Teixeira 

O presente texto está embasado em pesquisas críticas sobre sociedade e cultura brasileira e foi adaptado para finalidades didáticas, visando fortalecer os elos entre universidade e escolas conforme princípios que regem o Portal do Bicentenário.

Mentir é considerada uma atividade humana, já presente nas histórias contadas por Homero e Hesíodo, na Grécia antiga. Thomas Hobbes (1839) acreditava que era também a capacidade de mentir que diferenciava homens e mulheres de animais. John Locke (1894) afirmava que os indivíduos não só gostavam de enganar, como também de serem enganados. Para Barnes (1996), diferentes contextos possibilitam diferentes maneiras de mentir. Talvez seja por isso que no século XIX, especificamente na Corte brasileira entre os anos de 1830 e 1860, existiu uma agremiação intitulada Sociedade Petalógica do Rossio Grande. Seus membros, dentre eles o jovem Machado de Assis, se definiam como “estudiosos da mentira” e se reuniam na Praça da Constituição, n. 64, onde aconteciam as reuniões que foram, a partir de 1853, registradas em Ata e publicadas na Marmota Fluminense, jornal de variedades que tinha como proprietário o editor Francisco de Paula Brito, que foi também o idealizador da Sociedade de Petalogia

De modo geral, os iniciados nessa agremiação pretendiam, através da invertida lógica de “contrariar aos mentirosos, mentindo-lhes”, constranger e envergonhar aqueles que tomavam e apregoavam como verdades tudo o que ouviam. Objetivavam também que os mesmos mentirosos, logo após que tivessem conhecimento de que a notícia que tomavam e repassavam como sendo verdadeira constituía-se em uma notícia petalógica (ou seja, mentira/invenção), “se corressem de envergonhados e se corrigissem”, pois, a Sociedade foi instituída, segundo seu fundador, “para dizer a verdade como deve ser dita a quem quer que seja” (Marmota Fluminense, 1859). 

As mentiras que os iniciados na agremiação intitulavam petas funcionavam como crítica social. As figuras sociais mais peculiares da época foram os principais alvos dos iniciados: os “maus” mentirosos, que não mentiam ao modo da petalógica; alguns membros da Câmara dos Deputados que abandonavam a razão e o bom senso; “falsos” bacharéis; administradores das Barcas de Banhos, aqueles que queriam “civilizar” o carnaval, entre tantos outros.

Buscavam a valorização da verdade no escracho e desprestígio da mentira. Embora possa parecer contraditório, os iniciados na agremiação usavam a mentira como estratégia para a valorização da verdade. As petas funcionavam como uma espécie de contranarrativa. No entanto, possuíam objetivo e objetos que podem ser considerados o inverso da contranarrativa mentirosa que experimentamos atualmente. Há, neste último caso, uma tentativa em “redefinir” a realidade, onde alguns sujeitos apropriam-se de narrativas multiculturais e de questões sociais importantíssimas relacionadas a gênero, raça e classe, vendendo uma realidade alternativa e invertida. Lançam um manancial de mentiras que sobrecarrega e atordoa as pessoas, fazendo desvios de conduta parecerem “normais” e aceitáveis. O cansaço da indignação toma o lugar da indignação, o que dá espaço ao cinismo que empodera quem dissemina as mentiras. O objetivo não é só lançar desinformação, mas também extenuar o pensamento crítico para, assim, eliminar a verdade. (KAKUTANI, 2018). 

Já os iniciados na Petalógica buscavam com as mentiras aguçar o pensamento crítico para, então, revelar a verdade. Através da linguagem, invertiam a realidade, mas não com o intuito de apresentar outra alternativa mais vantajosa ou conveniente, mas sim de mostrar a realidade da experiência “nua, crua” e dolorida porque era a dor ocasionada pela reflexão e encontro com a realidade através do humor: as petas revestiam-se de ironia e humor. Entre pilhérias, risos zombeteiros e “risadas geraes” que grande parte dos encontros da Sociedade Petalógica do Rossio Grande foi descrito. O humor foi constante nesses encontros e figurou, sobretudo, na mentira. O humor do século XIX serviu para ser a voz do cidadão comum. Entre as décadas de 1820 e 1870, os humoristas desempenharam um papel importante como críticos da sociedade. Seus trabalhos ajudaram a ilustrar como a sociedade do século XIX questionou as decisões e objetivos dos grandes detentores de poder de decisão política.

A Sociedade Petalógica parece ter arrefecido com a morte de seu idealizador e presidente Francisco de Paula Brito, em dezembro de 1861. Depois disso, os encontros tornaram-se mais esparsos e em 1865 é possível encontrar, nas páginas do Diário do Rio de Janeiro, um texto saudoso de Machado de Assis falando sobre a Sociedade Petalógica de Paula Brito, o café Procópio oitocentista, onde iam todos; políticos, poetas, dramaturgos, artistas, viajantes. E onde se conversava sobre tudo: a retirada do ministério, a pirueta da dançarina da moda, o discurso do marquês do Paraná. Segundo Machadinho, os petalógicos estavam espalhados por toda a superfície da cidade examinando boatos e farejando acontecimentos. Ainda buscamos encontrar seus vestígios nas páginas amareladas das revistas e jornais do século XIX. 

Recomendamos, portanto, o uso deste artigo por professores e estudantes da rede básica de educação enquanto material complementar para preparo de aulas, fonte para seminários temáticos, oficinas de leitura, rodas de conversa e outras atividades de ensino.

 

Para saber mais

ASSIS, Machado de. Folhetim: ao acaso, Diário de Rio de Janeiro, 3 jan. 1865.
BARNES, J.A. Um monte de Mentiras: Para uma sociologia da mentira. Campinas: Papirus, 1996.
KAKUTANI, Michiko. A Morte da verdade. Notas sobre a mentira na Era Trump. Intrínseca: São Paulo, 2018.
MORREALL, John. Taking Laughter Seriously: Laughter, Wit and humor- Psychological aspects.. Albany: State University Of New York Press, 1983. 141.
Marmota Fluminense: jornal de modas e variedades. 1853.
SALIBA, Elias Thomé (2002). Raízes do riso: a representação humorística na história brasileira: da Belle Èpoque aos primeiros tempos do rádio. São Paulo: Companhia das Letras. 

 

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