Levy e a liberdade: terra e trabalho no Pós-abolição

/Marileide  Lázara Cassoli

 

Era apenas mais um dia de trabalho na pequena roça. Levy levantou-se antes dos primeiros raios de sol. Hábito adquirido nos longos anos de trabalho na lavoura. Com a enxada na mão dirigiu-se para o Catita, como era conhecido o terreno no qual cultivava a sua roça. O caminho percorrido dia a dia era longo. A terra em que cultivava ficava distante do lugar onde morava e o cuidado cotidiano do roçado incluía afugentar os porcos do mato que costumavam estragar as roças daquela parte das terras da Fazenda do Gualaxo

A normalidade do dia de trabalho foi rompida pela exigência do tenente-coronel (nota guarda nacional) José Francisco das Neves que o roceiro assinasse uma carta declarando que a roçada no Catita era permitida pelo tenente-coronel. Sem saber que faria história, Levy, a carta e sua pequena roça tornaram-se protagonistas de uma disputa por terras que se iniciou em 1902 e se estendeu por mais de vinte anos. A disputa envolvia o já citado tenente-coronel José Francisco das Neves e o capitão Torquatro José Lopes Camello, grandes proprietários de terras do município de Mariana, em Minas Gerais. 

As relações de Levy com estes homens vinham de longa data. Nascido na Gualaxo, era filho de Plácido e Bernarda, que, assim como ele, foram cativos nesta mesma fazenda. Em 1870, ele casou-se com Laura, filha de Felisbina, também cativa e nascida na Gualaxo. Nestas terras, o casal Laura e Levy, tiveram dois de seus filhos: Levinda, nascida naquele mesmo ano, e Firmino, nascido ingênuo, em 1873. (Lei do Ventre Livre)

Nestes tempos de escravizado, Levy e seus familiares estavam sob a posse de Antônio Januário de Magalhães, um dos herdeiros da Gualaxo e cunhado do capitão Torquatro José Lopes Camello. Viviam e trabalhavam, ao lado de parentes e de outros cativos e cativas, desempenhando tarefas diversas naquela unidade produtiva: no engenho de socar formação aurífera da lavra denominada São João, na carvoaria, na olaria de telhas e lenheiro, na retirada de madeira a ser comercializada com a Companhia de Passagem, na lavoura, na criação de animais, além do serviço doméstico desempenhado pelas criadas da casa, amas de leite, cozinheiras, lavadeiras e passadeiras. As genealogias abaixo mostram, além dos grupos familiares que se formaram na Gualaxo, o quanto a reprodução natural foi importante para a manutenção da mão de obra escravizada naquela fazenda, principalmente a partir da segunda metade do século XIX: leis de 1831 e 1850. 

Aqueles também foram tempos em que as relações dos proprietários da Gualaxo com o tenente-coronel José Francisco das Neves eram pacíficas e amistosas: o tenente-coronel testemunhou o casamento de Levy e Laura e de Firmino, filho do casal, em 1889, já na vida em liberdade. Os registros de casamentos dos Pinto Nery revelam muito mais do que apenas os laços de amizade entre os Lopes Camello e os Neves ou entre estes fazendeiros e a família de libertos, colocam às claras a complexa teia de relações sociais e de dependência pessoal que conectou estes atores sociais no pós-abolição. Teia esta que acabou por colocar o protagonismo da disputa pelo Catita nas mãos do liberto Levy Pinto Nery. 

No decorrer da demanda pela terra os relatos das testemunhas diante da justiça revelam a multipilicidade das relações sociais ou de trabalho que marcaram as vivências dos ex-escravizados da Gualaxo e de outras fazendas próximas. De acordo com o testemunho de Appolinário Antônio da Silva, ele e outros trabalhadores foram os primeiros a serem chamados pelo capitão Torquatro para no Catita. Ao chegarem ao local, depararam-se com outros trabalhadores, vindos da freguesia de Camargos, contratados pelo tenente-coronel Neves, para que também roçassem o referido terreno. 

Contudo, Antônio Lopes Camello, filho do capitão Torquatro ordenou aos trabalhadores contratados por Neves que retornassem a Camargos, pois aquelas terras pertenciam a seu pai. Após a finalização do serviço, o capitão Torquatro ofereceu não apenas a sua roçada como também a começada por Neves, para que Appolinário e outros trabalhadores plantassem e colhessem os frutos dos cultivos.  

Porém, apenas Levy e Dionísio de tal aceitaram a oferta de cultivar a roça feita por Lopes Camello. Desde menino ele conhecia aquelas terras, nelas, ainda como cativo, havia cuidado das plantações e tirado madeiras para fazer as cercas na Gualaxo. O que Levy não contava era que, ao assumir a roça, se visse na obrigação de requerer autorização do tenente-coronel Neves para dar prosseguimento ao cultivo da terra. Para que pudesse plantar e colher os frutos de seu trabalho, assinou uma carta declarando que só continuava naquela terra por consentimento do tenente-coronel José Francisco. 

Sua posição nesta demanda jurídica era muito delicada. Podemos ver os receios de Levy através da leitura de seu depoimento diante do juiz:  

[Levy] disse (…) que tendo feito a cerca de oito anos uma roça no lugar denominado Catita por autorização dos Autores, aí plantou e (…) a mesma roça e nas vésperas da colheita o Coronel Neves exigiu dele depoente uma carta pedindo-lhe consentimento para colher a mesma roça tendo ele depoente assinado uma carta que lhe apresentada em casa do Tenente Miquelim Soares (…) carta essa que foi assinada a seu rogo e que tudo fez por que sendo pobre não queria saber de dúvidas embora sabendo que estes terrenos eram de propriedades dos autores.

No momento de seu depoimento, Levy tinha 62 anos de idade, ainda estava casado, era lavrador e não sabia ler ou escrever. Por meio de seu depoimento, ele deu voz a muitos outros homens e mulheres que defrontaram-se com a dura realidade do controle sobre o campo pelos antigos proprietários de terras e de gentes. Por trás do autoreconhecimento de sua condição de pobre encontrava-se implicitamente a sua situação de dependência em relação aos proprietários locais, afinal assinou a carta pois não “queria saber de dúvidas”. Ou seja, obedecia à solicitação do tenente-coronel para manter a sua roça e colher os frutos de sua produção. Como veremos adiante, Levy não foi o único a procurar manter-se em uma posição de “neutralidade” em relação aos desafetos existentes entre estas famílias de proprietários. 

Além de Levy, vários outros antigos escravos foram convocados a testemunhar na demanda jurídica pelos limites da Gualaxo. Nicolau Fausto da Silva, parceiro de Levy na roça que motivou a demanda jurídica; Secunda Pulcheria de Souza, destinada em 1876 ao quinhão de herança de Albina Pulcheria Clementina da Silva, irmã do capitão Torquatro; Crescencio de tal, carpinteiro, parte do quinhão de Clara Josephina da Silva, em 1876, também irmã do capitão, e Eloy Pinto Nery, irmão de Levy. 

A participação dos antigos escravos nesta disputa foi fundamental para a compreensão dos limites geográficos definidores das terras pertencentes a cada um dos proprietários, assim como dos usos aos quais a terra era destinada. Afinal, foram estes homens e mulheres que participaram ativamente do cotidiano de trabalho nas lavouras, nos engenhos, nas queimadas das roçadas, nos plantios, nas colheitas, nos engenhos de cana ou de mineração, nas fábricas de olaria, etc. A disputa pelas terras trouxe à tona, mais uma vez, as pontes entre o passado escravo e a vida em liberdade, reconectando antigos senhores e seus cativos. Revelou ainda, as barreiras a serem transpostas para o acesso à terra e ao trabalho na lavoura.  

Nos depoimentos das testemunhas, há diversas referências à concessão de terras, por parte dos ex-senhores, para cultivo de roças pelos libertos, no pós-abolição. O relato de Appolinário Antônio da Silva nos informa sobre essa prática ao narrar sua recusa em manter a roça oferecida pelo capitão Torquatro:  em seu nome e no de seus companheiros, ele não aceitou as roçadas oferecidas por localizarem-se distantes de suas casas e por ser o terreno constantemente atacado por animais (porcos do mato) que colocavam em risco as plantações. Contudo, não teve qualquer receio em propor a concessão, ou mesmo o arrendamento, de terras mais próximas às suas moradas. 

A preocupação com a preservação dos direitos sobre as terras a estes “ocupantes ocasionais” povoava o cotidiano dos proprietários rurais do município de Mariana. No ano de 1897, Manoel Agostinho Gomes e sua mulher, Dona Francisca Virgínia Carneiro, agricultores, residentes no distrito da Barra Longa, citaram, em uma ação de despejo, a Manoel Theodoro Bispo e sua mulher, Ludovina da Conceição, residentes no Gesteira, localizado no mesmo distrito. De acordo com o advogado dos proprietários das terras, a ação estava fundamentada nos seguintes motivos:

(…) os Suplicantes são senhores e possuidores de oito alqueires e uma quarta de terras de cultura e parte das casas e moinho com suas divisas descriminadas sitas no Gesteira, distrito de Barra Longa, desta Comarca, como mostra o documento junto. Que Manoel Theodoro Bispo e sua mulher estão ocupando como intrusos um pedaço pequeno das ditas terras, onde já fizeram uma casinha com plantações e pretendem aumentá-la com mais uma varanda ou água furtada, e que tudo tem feito sem consentimento dos Suplicantes. 

Ao que parece, segundo o testemunho de José Luiz de Castro, os réus, Theodoro Bispo e sua mulher, acabaram por desistir da construção da varanda mediante a oposição dos proprietários à mesma. Os autos processuais não informaram qual a legislação que seria utilizada para a ação de despejo. Contudo, o temor dos autores poderia estar vinculado à prática do usucapião. A Lei de Terras de 1850 garantia “o posseiro na parte cultivada da terra, com morada habitual” O texto da lei referia-se prioritariamente às terras devolutas pertencentes ao Estado, mas a precariedade dos registros sobre a propriedade da terra pode ter reforçado o receio de que os “ocupantes ocasionais” das mesmas recorressem à justiça reivindicando a posse da parcela de terra ocupada pelo uso da mesma ou pela construção de benfeitorias.  (SILVA, 1996: 325).    

Retomamos, agora, os posicionamentos de Appolinário e de Levy em relação aos desafetos existentes entre os dois fazendeiros. Ambos ressaltaram em seus depoimentos uma postura de não confrontamento com os fazendeiros. Esta “neutralidade” transparece na afirmação de Appolinário de que ele e seus companheiros aceitaram a proposta para o trabalho nas terras do capitão Torquatro José Lopes Camello, pois trabalhavam como jornaleiros e não queriam, com esta decisão, confrontar “a pessoa alguma”.  Por “pessoa alguma”, leia-se o tenente coronel José Francisco Neves. Jornaleiros, camaradas ou dependentes,  estes homens equilibraram-se sobre a linha frágil que definia as alianças ou as desavenças políticas entre os grandes proprietários de terras. 

As preocupações de Levy e Appolinário indicavam, ainda, que estes homens possuíam  uma compreensão muito clara dos riscos que as escolhas pessoais/políticas poderiam ter sobre os seus destinos ou de seus familiares. Optar abertamente pelo apoio a um ou outro proprietário em situações de disputas políticas, pessoais ou por divisas de terras poderia resultar na perda das oportunidades de trabalho, na ruptura de redes de sociabilidade ou, em casos extremos, de qualquer possibilidade de garantir os meios de sobrevivência naquela localidade. Desta forma, o complexo exercício da autonomia pelos libertos defrontou-se com os obstáculos impostos pela política latifundiária e eleitoral do início da República, ou ainda, da preservação, ou não, das teias pessoais construídas na vida em cativeiro.  

A história de Firmino, filho de Levy, trazem reflexões sobre esta questão. Seu relato, no decorrer do processo, permite deduzir que ele, e muito provavelmente a sua família, obteve a liberdade pelo menos dois anos antes da abolição da escravidão. Seu depoimento foi tomado no ano de 1908, quando ele afirmou ter 35 anos de idade, logo, sair da Gualaxo aos 13 anos de idade indica que alcançou a sua liberdade em 1886. Ainda considerando as referências cronológicas por ele fornecidas, em 1907, Firmino havia deixado de tomar conta dos carros de boi do tenente-coronel Neves, função que desempenhava desde o ano de 1895. Contudo, esta não foi a única função que este liberto exerceu junto ao tenente-coronel. O procurador dos autores desta ação judicial, a família Lopes Camello, contestou o valor de seu depoimento por ser: 

 a mesma [testemunha] suspeitíssima, comensal, capanga e empregado do Réu a quem acompanha em política provocando atritos e conflitos em Bento Rodrigues, onde é conhecido por cão de fila do Coronel Neves (…)  

A trajetória de Firmino revela construções de liberdade em que a autonomia de movimento não necessariamente estava vinculada à mobilidade espacial/geográfica, mas, sim, à liberdade de escolher a quem servir.  Ao contrário de seu pai, Firmino não teve dúvidas quanto ao caminho a ser percorrido em sua vida de liberdade. Associou-se ao homem que havia testemunhado o casamento de seus pais, e o seu próprio, muitos anos depois. Os laços de sociabilidade vertical consolidados por ele e seus familiares prestaram-se para garantir-lhe os recursos de sobrevivência necessários para que construísse a sua liberdade: aprendeu a ler e a escrever, constituiu família e tornou-se um respeitável pagador de impostos à Câmara Municipal de Mariana pela produção de rapadura de seu engenho, no ano de 1920.  

Tanto para Firmino quanto para o seu pai, Levy Pinto Nery, construir a liberdade perpassou pela habilidade em transitar entre as pontes da antiga escravidão e da vida como liberto. Levy roçou nas terras que lhe foram concedidas por seu antigo senhor. Terras que pertenciam à mesma fazenda onde nasceu como escravo, cresceu e constituiu família. Compartilhava o trabalho na roçada com um antigo companheiro de cativeiro, Nicolau Fausto da Silva. Foi hábil ao ver-se envolvido nas desavenças entre duas grandes famílias de proprietários rurais do distrito de Camargos. Afinal, preservou seu acesso à terra e colheu os frutos de sua roçada.

As histórias vividas sob o cativeiro por estes protagonistas não foram deles apartadas por meio das leis ou da memória pretensamente apagada dos documentos oficiais. Pelo contrário, prestaram-se muitas vezes como um recurso fundamental para a construção da vida em liberdade. Muitos Levys e Firminos foram hábeis em transitar pelas pontes construídas entre o passado em cativeiro e a vida em liberdade. Este talvez tenha sido o maior desafio enfrentado pelos “libertos do Treze de Maio”.

 

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