População negra, abolicionismo e resistência à escravidão e a construção do estado Nacional na sala de aula
/Tayanne Morais
O ensino de História do Brasil, segundo Circe Bittencourt, historiadora e autora do livro “Ensino de história: fundamentos e métodos”, está relacionado diretamente à construção da identidade nacional. Essa construção identitária, por sua vez, esteve fundamentada em um ensino de história pensado com o intuito de atender às demandas de grupos hegemônicos, dos quais excluem-se as populações não-brancas. Tendo como base o nacionalismo ufanista, as festas cívicas e, sobretudo, o culto aos “heróis nacionais”, o panteão da história brasileira, durante décadas, silenciou as formas de ser e existir da população negra.
Um rápido exercício de memória nos permite lembrar quantas vezes vimos a figura de Tiradentes, por exemplo, enquanto herói nacional e protagonista incontestável da Inconfidência Mineira (1789). Em contrapartida, quantas vezes vimos personagens como Lucas Dantas, Manuel Faustino, Luís Gonzaga e João de Deus em suas participações na Conjuração Baiana (1798)? Quantas vezes nos deparamos em sala de aula com os discursos de abolicionistas negros como o jurista sergipano Tobias Barreto de Menezes e o jornalista baiano Luís Gama? Quantas escritoras negras, a exemplo de Maria Firmina dos Reis, foram lidas por nós na escola?
A resposta dessas questões remonta a própria constituição do Estado Nacional brasileiro e sua formação em meio as fortes raízes coloniais, onde o tráfico e a escravização de pessoas negras permaneceram enquanto pilares da sustentação econômica e social do país até a república. A permanência do sistema econômico escravista durante o Império manteve as hierarquias étnico-raciais do período colonial e aprofundou a exclusão socioespacial da população negra no Brasil.
A composição do Estado Nacional esteve fortemente influenciada por esse pecúlio colonial e imperial, em que se fez presente o apagamento dos processos históricos de organização dos africanos escravizados e livres e de seus descendentes no Brasil República. Tratar das dimensões subjetivas, da luta pela liberdade e das formas de resistência dessas populações em sala de aula, no entanto, possibilita o distanciamento dessa história escolar alicerçada no eurocentrismo e promove a aproximação com uma história que combata as exclusões sociais que ainda atravessam as vivências negras em solo brasileiro.
Com base em uma percepção da história enquanto problema, podemos tratar das permanências e descontinuidades em relação a herança colonial, bem como as consequências diversas para cada setor da sociedade face à escravização. Em um trabalho pedagógico compromissado com o tempo presente de nossas aulas, cabe também destacar os aspectos étnicos dos escravizados como forma de evitar a homogeneização dos povos negros e enfatizar a pluralidade cultural das regiões africanas de onde os escravizados foram trazidos.
O/A docente pode, inclusive, abordar quais eram as atividades desenvolvidas pelos escravos e as condições em que esse trabalho era realizado, ressaltando os aspectos violentos do sistema escravista, possibilitando com isso a desconstrução do mito da escravidão brasileira enquanto a mais branda das américas. Em uma mesma sequência didática é possível questionar nossos estudantes sobre as reações dos escravizados em relação ao contexto em que viviam, o que pode servir de motivação inicial para problematizar o silenciamento das formas de resistências escrava e os motivos desse emudecer em nossa história escolar.
A especificidade do Quilombo de Palmares, que perdurou durante quase todo século XVII pode ser uma das vias a ser utilizadas pelo docente. Contudo, se faz necessário demonstrar a luta pela liberdade dos escravizados enquanto um processo que, do chão do quilombo à tipografia, muitas foram as frentes de atuação nos movimentos abolicionistas por parte de personagens negros da história brasileira. A tarefa educadora nessa perspectiva rompe com o ensino de história dogmático e ufanista para tecer relações dinâmicas e propositivas entre o passado e o presente, ao mesmo tempo em que traça um paralelo com as atuações de homens e mulheres que se fizeram ouvir em suas atuações pela autonomia de si e dos seus.
Nos argumentos jurídicos de Luís Gama, na pena da romancista Maria Firmina dos Reis ou na resistência coletiva do quilombo de Tereza de Benguela, têm-se diversas possibilidades para um ensino de história que se comprometa cultural e politicamente com a história do tempo presente. Nesse sentido, os artigos da Constituição Brasileira de 1988 que tratam dos Quilombos e seus remanescentes, sobre o racismo e a Lei 10.639/2003 são pontos de partida para que se coloque em perspectiva os movimentos contra a discriminação racial que redirecionaram a constituição e a agência do Estado Nacional face ao racismo estrutural e institucional que molda as relações sociais ainda nos dias de hoje.
Através da resistência da população negra escravizada e os movimentos abolicionistas, a educação histórica pode questionar a exclusão socioespacial negra no Brasil Colônia, seus desdobramentos no Brasil Império, e como essa exclusão ainda reverbera no Brasil República do século XX e atual. Vale ressaltar que nesses “brasis”, ainda que estruturado em uma sociedade racializada, foram muitas as insurgências que resultaram em êxitos constitucionais, no reconhecimento institucional da existência do racismo e da necessidade permanente de combate-lo dentro e fora da sala de aula.
Para saber mais
As redes comerciais africanas e o estabelecimento do tráfico de escravos nos séculos XVI e XVII.
O negro e o trabalho no pós-abolição.
#paratodesverem Na imagem de manifestação em espaço público, em primeiro plano, uma mulher negra segura, com a mão direita, um cartaz em que está escrito “MULHERES NEGRAS – CONTRA O GENOCÍDIO DO POVO NEGRO; CONTRA O ESTADO DE EXCEÇÃO”. Ao fundo, vê-se outros e outras manifestantes e uma paisagem desfocada.